Prof. Dr. ADRIANO FERNANDES FERREIRA
(orientador)
INTRODUÇÃO
O artigo 7 da CISG demonstra e representa a necessidade que a referida norma traz de ser encarada com um conjunto que independem de regras e valores, mas que vai além disso. Da análise crítica da questão, a CISG não deve conter no seu corpo textual noções aleatórias ou amplas que faça com que, a interpretação do que ela quer mostrar não seja condizente com os valores internos da Convenção. O artigo 7 apresenta uma forma adaptável ao desenvolvimento do comércio internacional, sendo assim, utilizando- se das regras e valores.
O corpo jurídico da Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Contratos de Vendas Internacionais de Mercadorias não pode ser exaustivo, pois seria juridicamente impossível. Nesse caso, para que haja a abrangência de todos os assuntos necessários, as tipificações legislativas acabam por possuir um certo número de lacunas em seu texto. O que não obsta pela boa aplicação do direito lá contido, pois as lacunas sempre existirão. Mas para preenche-las é essencial que todos os tratados tenham uma provisão ou um norte que nos auxilie a suprir essa omissão. Na CISG, o artigo 7º orienta os casos em que há omissão ou falta de regras específicas, indicando pela aplicação dos princípios gerais, para fins de uniformização, sempre que possível.
Ademais, as questões que não são expressamente resolvidas e que não respeitam às matérias que são reguladas pela convenção, serão decididas de acordo com os princípios gerais previstos, mas na falta desses princípios, será decidida de acordo com a lei aplicável com base nas regras do direito internacional.
Ainda, observa-se que o artigo supra, apresenta expressamente os princípios de boa-fé e de liberdade formal, deixando espaço para facilitar a elaboração dos textos legais, bem como para preservar o caráter internacional da norma e da uniformidade.
DESENVOLVIMENTO
Historicamente, desde as tentativas iniciais de criar uma lei de vendas uniforme na Idade Média, o problema de diferentes interpretações por diferentes tribunais tem incomodado os usuários do direito comercial.
A lex mercatoria medieval deveria resolver muitos desses problemas, funcionando como um conjunto de princípios que os tribunais poderiam aplicar além das fronteiras e tradições legais. De fato, em uma comparação ao Artigo 7º da CISG, um dos princípios da lex mercatoria era seu caráter transnacional, pois não estava ligado a nenhum sistema legal em específico.
Embora, por obviedade, o artigo 7º seja diferente dos artigos das legislações de mesma natureza que o antecederam (como a lex mercatoria), ele ainda mantém boa parte dos principais entendimentos que já haviam se difundido acerca da aplicação das regras sobre o comércio internacional.
Por esse motivo, com o passar dos séculos as sucessivas normas de direito internacional, principalmente as que abrangiam conteúdo similar ao do artigo 7º, não mudaram drasticamente o seu significado ou a intenção da lei anterior, mas sim deixaram- na mais clara. E de fato, foi o que aconteceu com o artigo 7º da CISG. Um exemplo prático são os precedentes judiciais que interpretam o Artigo 17 da antiga Uniform Law on the International Sales of Good (ULIS), que atualmente ainda são úteis para interpretar o Artigo 7º da CISG.
Desta feita, a história do Artigo 7º enfatiza a importância de uma interpretação de marcantes características, sejam uniformes, progressivas e preferencialmente não domésticas sobre a CISG.
Ainda em referência as tentativas modernas de desenvolver uma lei de vendas uniforme mais recentes, coube ao Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) promulgar a convenção sobre a formação de contratos (ULF) e vendas internacionais (ULIS).
Durante os trabalhos, os redatores dessas primeiras convenções assinaram a Convenção de Haia de 1964 sobre vendas, que entrou em vigor em nove países. Essa Convenção de Haia foi o resultado de anos de trabalho e, apesar de ganhar pouca aceitação fora da Europa Ocidental, formou a base para o trabalho da CISG em 1980.
Foi ao longo do desenvolvimento de uma lei de vendas internacional uniforme que esses mesmos redatores retiveram consistentemente um artigo pedindo uma interpretação internacional das provisões da lei.
Como já expresso, o Artigo 7º da CISG baseou-se nos requisitos interpretativos gerais enunciados no Artigo 17 da Uniform Law on the International Sales of Good (ULIS), mas a CISG abordou o problema de maneira diferente. Na ULIS, a convenção excluiu explicitamente o direito internacional privado e norteou os leitores a interpretar a lei de acordo com os princípios gerais em que o fundamentou.
A razão a qual se remete aos princípios gerais suscitado pelos redatores da CISG é de manter a referência aos princípios gerais, mas muitos julgaram-na vaga e deficitária de clareza.
A partir dessa problemática, cogitou-se pela aplicação da lei do vendedor como um preenchedor de lacunas foi rejeitada pelos redatores. Mas em sentido contrário, foi proposto levar em consideração o objetivo político de promover a uniformidade na sua aplicação, a observância da boa-fé no comércio internacional e a lei aplicável em virtude das regras do Direito Internacional Privado.
De forma complementar, ressalta-se que o caráter internacional da Convenção apenas pode ser respeitado caso o intérprete se desgarre dos conceitos pertencentes ao seu direito nacional.
Mas isso não significa que a CISG não deva ser compreendida, tanto quanto possível, sem se valer do subsídio dos direitos nacionais. Isso porque se a aplicação da CISG for excessivamente particularizada, ocorrerá uma contradição acerca do segundo requisito de aplicação, o da própria uniformidade.
Em que se pese, é sabido que a uniformidade absoluta não é possível e nem mesmo desejável. Por isso a determinação pela necessidade de promover a uniformidade na aplicação da CISG, não exige uma uniformidade absoluta, mas sim uma preocupação com a uniformidade.
Entretanto, a ausência de um órgão jurisdicional com poderes para pacificar diferentes interpretações acerca da aplicação da Convenção dificulta que esta receba uma aplicação uniforme.
A história tem provado, porém, que diversos tribunais judiciais e arbitrais vêm se valendo de precedentes, em que pese não obrigatórios, de outras jurisdições a fim de se informar a respeito da melhor aplicação, evitando assim equívocos e interpretações defeituosas.
Ainda, há casos em que falhas da própria Convenção, ou mesmo pelo próprio imbróglio do legislador convencional, que dificultam ou impossibilitam a efetiva uniformidade.
Quanto a esses obstáculos contidos na Convenção, não é possível imaginar que ela venha a sofrer emendas em futuro próximo, visto que a requisição aos princípios norteadores está sendo suficiente para sustentar o norteamento da sua aplicação.
Este artigo estabelece expressamente princípios de boa-fé de de liberdade formal na harmonização de textos legais de modo a facilitar permitir que o caráter internacional da norma e a uniformidade sejam preservados.
Nese contexto, as disposições deste artigo explicitam a necessidade de a CISG ser encarada como um conjunto independente de regras e valores, e por este motivo deve se furtar de conter em seu corpo noções vagas e amplas que deem margem a interpretações não condizentes com os valores próprios da Convenção, porém, apesar de dever se furtar de conceitos amplos e vagos, o art. 7 traz a noção de que as regras e valores de ordem internacional devem ser adaptáveis ao contínuo desenvolvimento do comércio internacional, impondo assim um desafio quando a aplicabilidade e extensão que se dá a garantia de direitos e normas:
[...] permitir que o juiz nacional ignore os critérios da internacionalidade e da uniformidade seria, de certo modo, como permitir uma reforma unilateral, uma reserva não anunciada da Convenção, subvertendo todo o processo jurídico e político do qual ela emergiu e de onde ela retira sua legitimidade. 14 O art. 7 da CISG, assim, desafia o juiz nacional a ir além das autoridades e fontes arraigadas ao sistema jurídico doméstico – às quais foram ensinados a recorrer desde o início da sua educação jurídica –, num verdadeiro exercício de ampliação do espectro de visão sobre o direito e suas fontes.
Desse modo, apesar de inicialmente poderem ser encaradas com meras indicações, o art. 7 da CISG deve ser encarado como comando expresso direcionado a julgadores na aplicação de normas e em toda a construção de seus processos decisórios, de modo que seja garantida uma uniformidade de modo a assegurar o caráter internacional e a aplicabilidade de regras de direito internacional privado, ou seja, o art. 7 determina que a Convenção deve seguir entendimentos sólidos e desassociados de julgamentos pré definidos e tomadas com base em particularidades que fujam a isonomia exigida.
Segundo os especialistas, uma primeira orientação que emana deste critério é a de que não se deve tentar transpor aos termos contidos na CISG o significado que termos idênticos ou similares do ordenamento jurídico pátrio possam ter. Ao contrário, aos termos da Convenção deve ser reconhecido um “significado dentro da CISG”, com base na estrutura, nos objetivos basilares, e na história da elaboração da Convenção. 23 Pode acontecer que, em situações excepcionais, demonstre-se que um termo ou conceito particular foi empregado na Convenção precisamente tendo em vista o significado que ele tinha em um determinado sistema jurídico, ou que o seu significado “dentro da CISG” não diverge significativamente do significado funcional que lhe é impresso por um determinado sistema jurídico. 24 Todavia, mesmo nessas situações excepcionais, não se pode entender que os redatores da Convenção tiveram a intenção de imprimir-lhe esse sentido tradicional, 25 e não se pode fazer recurso à doutrina ou jurisprudência sobre o direito de origem doméstica a fim de interpretar o termo em questão.
No que se refere ao caráter internacional, apesar do conceito geral que o guia ser a interpretação isonomia, esta não deve ser encarada de forma generalizada, uma vez que, as relações comerciais internacionais exigem a compreensão e a intersecção de uma diversidade de normas considerável, que não deve ser ignorada, devendo-se estabelecer um contexto e ambiente apto a comportar a convivência proporcional entre a preservação de diferentes sistemas e tradições jurídicas, de forma a afugentar ambiguidades mediante a coexistência múltipla de normas:
Na opinião de John Felemegas, o critério da internacionalidade exige que os intérpretes e aplicadores da CISG compreendam que, embora a Convenção seja formalmente incorporada aos diversos sistemas jurídicos nacionais, sua nota essencial decorre justamente do fato de ela ter sido elaborada e acordada no nível internacional. Assim, mais do que vista como um braço do direito doméstico, deve a Convenção ser lida e interpretada como parte do direito internacional (em sentido amplo), devendo ser dedicada a ela uma abordagem a-nacional, única e uniforme. A interpretação da CISG deve, portanto, poder operar para além das limitações e estreitezas das abordagens nacionais de interpretação do direito doméstico, mas sem incorrer no risco de tornar-se ambígua ou abstrata.
Outro ponto significativo a ser destacado quanto a imprescindibilidade de promoção da uniformidade é conteúdo que se pretende imprimir tendo por parâmetro basilar a uniformidade. Para Renata Fialho (2009, apud, Gazzaneo, 2017 ) apresenta dois padrões de uniformidade: a estrita e a relativa , evidenciando que o núcleo da uniformidade deve ser funcional, considerando os objetivos de uma convenção internacional, que é preservar e aprofundar as relações internacionais mantendo garantir direitos e preservando a soberania dos entes na tratativa permitindo assim a progressão de um regime verdadeiramente uniforme para o direito do comércio internacional, para isso, uma das ações necessárias é a elevação da jurisprudência estrangeira à categoria de obrigação do juiz nacional, de natureza de direito internacional público, que é justamente o que pretende o artigo 7 da CISG.
Portanto, o que se pode esperar é apenas que essas falhas venham a ser lentamente superadas por meio de interpretações que procurem respeitar a finalidade e o caráter internacional do texto.
(1) Na interpretação desta Convenção ter-se-ão em conta seu caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação, bem como de assegurar o respeito à boa fé no comércio internacional.
ARTIGO 7.1 - Para a interpretação da presente Convenção serão levados em consideração seu caráter internacional bem como a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação e de assegurar o respeito da boa-fé no comércio internacional.
A boa fé é um dos princípios básicos nas relações contratuais. Dela se origina a segurança das relações jurídicas, fazendo com que as partes atuem de forma seguir os padrões éticos da confiança e da lealdade contratual.
A cláusula da boa-fé pode a princípio parecer estranha à um artigo que trata da interpretação da presente Convenção, contudo, seus efeitos no comércio internacional são inegáveis e facilmente perceptíveis. Há princípio a ideia foi fortemente rejeitada pelas delegações presentes na formação da Convenção, sendo apresentada primeiramente pelo representante da Espanha em 1972, só sendo considerada novamente em 1978.
As opiniões acerca da aplicação do princípio da boa-fé na CIGS possuem interpretações divergentes. Alguns acreditam que não passa de um mero instrumento para interpretação dos juízes nos contratos internacionais, e há também aqueles que acreditam que essa norma é essencial para o correto funcionamento das relações internacionais.
A proposta inicial para a inserção da boa-fé na Convenção seria “no sentido de que se uma das partes se viola o princípio da negociação justa, a outra parte poderia exigir o reembolso das suas despesas” ². Sendo a ideia rejeitada, considerou-se então que o princípio fosse usado apenas para fins de interpretação, tanto da Convenção como nos contratos em geral, e consta-se nas disposições gerais.
Segundo o professor Jacob S. Ziegel, da Universidade de Toronto, o n.º 1 do artigo 7.º acabou por ser adoptado como compromisso. Embora o parágrafo (1) não se refira especificamente à observância da boa-fé na formação do contrato, sua linguagem é suficientemente ampla para admitir sua inclusão.
A boa fé estabelecida como princípio geral da convenção serve como um padrão de razoabilidade a ser seguido pelos países signatários. “O que é razoável pode ser determinado apropriadamente verificando o que é normal e aceitável no comércio relevante. Esta abordagem é análoga e é apoiada pelo Artigo 9, que estabelece que as obrigações contratuais incluem ‘práticas estabelecidas pelas partes e usos ... no comércio particular”[1].
A inclusão desta norma no art. 7.1 visa, segundo o professor Catedrático de Direito Comercial da Carlos III Universidade de Madri, M del Pilar Perales Viscasillas, evitar diferentes interpretações que este texto podia trazer, visto que cada país possui um sistema jurídico diferenciado e próprio que consequentemente acarretaria em diferentes aplicações, alcançando assim a uniformidade necessária à um texto de formação e aprovação internacional.
Todavia, a inclusão do princípio permanece causando divergências no âmbito jurídico pois as correntes que são a seu favor ressaltam que a boa fé no comércio internacional pode direcionar não só os juízes e árbitros em sua interpretação da Convenção, mas também as partes participantes nos contratos de compra e venda individuais. Esse quesito pode vir a prejudicar a uniformidade da interpretação, uma vez que não há distinção entre a interpretação dada pelo tribunal e a execução escolhida pelas partes.
Segundo John Felemegas, no artigo[2] sobre a CIGS, “o princípio da boa-fé funciona de maneira diferente dentro dos diferentes sistemas jurídicos nacionais. Por exemplo, nos Estados Unidos, sua relevância é formalmente limitada ao desempenho e cumprimento do contrato. Por outro lado, na maioria dos sistemas de direito civil, bem como nos sistemas socialistas, o princípio da boa-fé não se limita ao desempenho, mas também se estende à formação e interpretação de contratos. Além disso, mesmo entre os sistemas de direito civil, a aplicação concreta do princípio da boa-fé na prática pode diferir consideravelmente.”
Em decorrência das opiniões claramente divergentes, chegou-se finalmente ao acordo que deu origem ao art. 7.1 da Convenção, o qual deve ser interpretado de forma à "observar a boa-fé no comércio internacional. Este artigo firma um meio termo entre as correntes que apoiavam que o princípio da boa-fé deveria ser imposto diretamente às partes contratantes durante a formação, desempenho, e rescisão do contrato de venda, e aqueles que achavam a citação da norma desnecessária e que a viam como um impedimento para a uniformização da interpretação da Convenção. “Este compromisso peculiar, na verdade, enterrando o princípio da boa-fé, tem sido caracterizado como "desconfortável", "estranho", e como um "compromisso estadista". Quase todos discordam quanto ao impacto, se houver, que o princípio da boa-fé pode ter no comportamento das partes de um contrato internacional para a venda de mercadorias”[3] .
De qualquer modo, a interpretação dos negócios jurídicos deve sempre buscar um ponto comum de modo a beneficiar ambas as partes contratantes sem ferir o ordenamento jurídico dos países envolvidos. Do mesmo modo que estes devem usar da autenticidade e da boa-fé nas suas operações comerciais, desde as fases preliminares até a execução do contrato, com vistas ao sucesso de suas atividades.
(2) As questões referentes às matérias reguladas por esta Convenção que não forem por ela expressamente resolvidas serão dirimidas segundo os princípios gerais que a inspiram ou, à falta destes, de acordo com a lei aplicável segundo as regras de direito internacional privado.
É indiscutível a intenção do legislador ao inserir o artigo sétimo na Convenção, visto que o mesmo busca trazer regras que irão guiar a interpretação da Convenção nas questões que não puderem ser resolvidas pelo próprio diploma, buscando ao final uma interpretação harmônica.
Não podemos iniciar, porém, os comentários à alínea (2) sem antes tecer breves palavras sobre a alínea (1), de onde se extrai a necessidade de uniformização da aplicação da Convenção, tendo como objetivo impedir que a mesma seja vista e interpretado de formas diferentes vindo a dificultar uma decisão, por exemplo.i Sem ater-me ao mérito da viabilidade de uma uniformização, entendo que é fato que a uniformidade comentada pelo artigo visa facilitar o tráfico jurídico, principalmente quando se trata de compra e venda internacional onde a uniformização é logicamente buscada em larga escala. Saber que o contrato celebrado entre pessoas de países diferentes será regido por uma mesma regra ou pelos mesmos princípios, quebra a barreira do desconhecido e impulsiona as partes a contratar.ii
Contudo, ainda que se pense em uniformização em um sentido mais amplo, onde uma mesma lei seria aplicada e válida para dois países diferentes, esbarramos na interpretação. Sem dúvidas o maior desafio, pois ainda que haja de uma forma concreta uma norma positivada ditando uma conduta, a interpretação precisa ser uniforme. A descoberta do sentido e significado da norma precisa ser uniforme, nesta monta, “mesmo havendo uma uniformidade exterior, a aplicação uniforme destas regras não é de nenhum modo garantida, pois, na prática, diferentes países irão inevitavelmente interpretar de modo diferente o mesmo texto”iii.
Inclinando o debate para a alínea (2) do artigo sétimo, deparamo-nos com o seguinte:
(3). As questões respeitantes às matérias reguladas pela presente Convenção e que não são expressamente resolvidas por ela serão decididas segundo os princípios gerais que a inspiram ou, na falta destes princípios, de acordo com a lei aplicável em virtude das regras de direito internacional privado.
Ora, é clarividente que o texto possui lacunas e é extremamente genérico, ainda que a intenção tenha sido das melhores. Sabe-se que lacuna é espaço vazio, falta, omissão e, segundo Maria Helena Diniz:
“O fenômeno da ‘lacuna’ está correlacionado com o modo de conceber o sistema. Se se fala em sistema normativo como um todo ordenado, fechado e completo, em relação a um conjunto de casos e condutas, em que a ordem normativa delimita o campo da experiência sem ser condicionada pela própria experiência, o problema da existência das lacunas ficaria resolvido, para alguns autores, de forma negativa, porque há uma regra que diz que ‘tudo o que não está juridicamente proibido, está permitido’, qualificando como permitido tudo aquilo que não é obrigatório nem proibido. Essa regra genérica abarca tudo, de maneira que o sistema terá sempre uma resposta; daí o postulado da plenitude hermética do direito. Toda e qualquer lacuna é uma aparência, nesse sistema que é manifestação de uma unidade perfeita e acabada, ganhando o caráter de ficção jurídica necessária. De uma forma sintética, poder-se-á dizer como Von Wright que ‘um sistema normativo é fechado quando toda ação está, deonticamente, nele determinada’."iv
Pignatta divide a lacuna na seara da Convenção em lacuna interna e externa. Lacuna externa seria aquela correspondente à matéria que é excluída do texto convencional e lacuna interna aquela concernente a uma matéria prevista, mas que não foi esgotada pelos artigos que a compõe. Com o fito de preencher uma lacuna interna tem- se que o artigo sétimo, alínea 2 descobre que é necessário recorrer aos princípios gerais que são basilares para a CISG e de forma subsidiária apoiar-se ao direito aplicado com base na regra de conflito entre leis.
Um risco na proposta de uniformização pela CISG é o que reside na aplicação desses princípios gerais, pois devido à multiplicidade de ordenamentos jurídicos e respectivos sistemas, cortes e tribunais a inclinação pode se virar para aplicação de princípios domésticos, fugindo da aplicação dos princípios gerais da CISGv.
Então, seguindo esse raciocínio, quais seriam os princípios gerais norteadores da CISG? O que seriam princípios jurídicos? Bem, os princípios jurídicos são normas que criam valores, padrões e valores de conduta. Importante destacar o conceito trazido por Humberto Ávila, onde diz que princípios expressam valores a serem preservados ou fins públicos a serem realizados, designando estados ideais, sem especificar a conduta a ser seguida. São manifestações jurídico-axiológicas que buscam promover um estado ideal de coisas, não indicando o caminho específico para que se possa atingi-lovi.
É importante ressaltar que os princípios norteadores da CISG não estão ainda definidos de forma taxativa em seu texto, porém há um entendimento pacífico acerca de quais seriam os princípios gerais centrais para os fins do artigo sétimo, alínea dois, os quais seriam discutidos a seguir.
São 5 os princípios gerais, quais sejam: autonomia da vontade, a proibição de comportamento contraditório, indenização integral do dano, mitigação dos danos e favor contractus.
O primeiro a darmos destaque será o princípio da autonomia da vontade, que consiste na possibilidade de as partes decidirem se e como a CISG irá ser aplicada aos contratos individuais. Tal princípio encontra-se consagrado no artigo sexto da CISG:
Art. 6º. As partes podem excluir a aplicação desta Convenção, derrogar qualquer de suas disposições ou modificar-lhes os efeitos, observando-se o disposto no Artigo 12.
Nesta toada, havendo conflito entre o referido princípio e algum outro, o primeiro deve prevalecer, visto que o artigo dá essa natureza dispositiva. Entretanto, não se pode dar ao referido princípio uma aplicação irrestrita, o que nos faz concluir que o princípio da autonomia da vontade não é um princípio absoluto.
De acordo com Allan Farnsworth:
Article 6 purports to give the parties an unqualified power to vary the effect of the Convention by agreement. On the other hand, article 4 makes it clear that, absent a contrary provision, the Convention does not affect any rule of domestic law dealing with the 'validity' of a contract provision. Taken together, articles 6 and 4 create a tripartite hierarchy, with domestic law on validity at the top, the agreement of the parties in the middle, and the Convention at the bottom. The domestic law on validity continues to control the agreement of the parties, and both control the Convention.vii
Uma parcela de autores preconiza que, com exceção da questão da validade contratual, o princípio da autonomia da vontade é ilimitadoviii. Contudo, não temos um consenso à limitação do princípio da autonomia da vontade.
Outro princípio que merece destaque é o da proibição de comportamento contraditório. Elencado no Artigo 1.8 dos Princípios do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado - UNIDROITix, a expressão latina nemo potest venire contra factum proprium proíbe o comportamento contraditório, de forma que “ninguém é dado vir contra os próprios atos”.
Em linhas gerais, diante da aplicação do stoppel:
“an individual is barred from denying or alleging a certain fact or state facts because of that individual’s previous conduct, allegation, or denial”x.
É vedado, sendo assim, que a parte venha contra fato próprio após haver incutido expectativa razoável em outrem de boa-fé́, que age em consequência de tal comportamento, em seu próprio detrimentoxi.
Seguindo com a explicação dos princípios, temos o princípio da indenização integral do dano, tendo como forma de aplicação as situações em que há descumprimento de obrigações e rescisão contratual.
Ainda que se tenha limitações ao princípio da indenização integral, é possível esclarecer que o objetivo central de tal princípio é que a parte que sofreu as consequências de uma violação contratual possa retornar à sua situação inicial, ou ainda mesmo, à situação em que se encontraria, caso a violação não tivesse ocorrido. Nessa esteira, a CISG também dá direito aos lucros cessantesxii.
O penúltimo princípio a ser discutido no presente trabalho é o da mitigação dos danos, que está previsto no artigo 77 da CISG, consistindo em uma limitação ao princípio da indenização integral. Caso a parte não comprove que mitigou os danos que incorreu, poderá ter seu pedido de indenização desconsideradoxiii.
E, finalmente, traremos o princípio do favor contractus, que desencadeia na busca pela manutenção dos contratos firmados sob os ditames da CISG, ocasião em que a rescisão contratual deve ser preferencialmente a última medida. De acordo com os ensinamentos de Kellerxiv, os motivos para se efetuar a manutenção de um contrato são: autonomia, segurança, utilidade e justiça.
Caso os conflitos não possam ser resolvidos com base nos princípios ora comentados, o inflito deverá ser resolvido com base no recurso de direito internacional privado de conflito entre leis e aplicar a lei nacional que melhor regerá o negócio jurídico. Para se aplicar o método de direito internacional privado deve o juiz, primeiramente, qualificar a relação jurídica, depois encontrar o elemento de conexão, isto é, descobrir a lei nacional aplicável para, em seguida, aplicar o direito vigente neste localxv.
CONCLUSÃO
Com a análise interpretativa, observa-se que o art. 7 da CISG deve ser considerado como uma "ordem" expressas que direciona os julgadores na aplicação de normas, bem como na elaboração de seus processos decisórios, de modo que assegure o caráter internacional, sendo uniformizado para a aplicação de regras do direito internacional privado. Aro contínuo, o art. 7 em epígrafe traz um desafio para a Convenção, determinado que está siga os entendimentos sólidos e desassociados de julgamentos que são pré-definidos, bem como as tomadas que tenhas por base a particularidades que se desviam da isonomia exigida. No direito internacional, o conceito geral a ser guiado é o princípio da isonomia, que não deve ser vista de forma generalizada, pois as relações comerciais internacionais exigem que seja considerável a compreensão e a interseção de uma diversidade de normas, que não sejam rejeitadas, tendo em vista o estabelecimento apto de um contexto e ambiente para comportar a convivência proporcional entre o cuidado de diferentes sistemas e tradições jurídicas, com fulcro em coexistência de normas múltiplas.
NOTAS:
i GOODE, Roy; KRONKE, Herbert; MCKENDRICK, Ewan; WOOL, Jeffrey. Transnational Commercial Law: Texts Cases and Materials. Oxford: Oxford University Press, 2007. 770 p.
ii PIGNATTA, Francisco A., “Comentários à Convenção de Viena de 1980 – Artigo 7” in www.cisg- brasil.net.
iii MUNDAY, R.J.C., “Comment – The Uniform Interpretation of International Conventions”, 27 ICLQ 450, 1978 apud FERRARI, Franco, “CISG Case Law: A new challenge for interpreters?”, RDAI, 1998, n. 4/5, p. 495.
iv DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito, São Paulo: Saraiva, 5ª edição, 1999.
v EÖRSI, Gyula. General Provisions. Op. cit., p. 2-1 e 2-36.
vi ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 85.
vii Tradução livre: “O Artigo 6 pretende dar às partes o poder de tratar de modo variado os efeitos da CISG por meio do contrato individual. Por vez, o artigo 4 determina que, salvo disposição em contrário na própria Convenção, a CISG não afeta as normas nacionais de validade do contrato. Diante disso, os artigos 6 e 4 criam uma estrutura de tripartite, na qual as regras de validade no âmbito da lei nacional estão no topo, o contrato entre as partes está no meio, e a Convenção embaixo. As normas nacionais a respeito da validade de contratos continuam regulando o contrato entre as partes, enquanto ambos regulam a Convenção.” FARNSWORTH, Allan E. Review of standard forms or terms under the Vienna Convention. Cornell International Law Journal,: v. 21. 1998. p. 441.
viii “Party autonomy. -- All agree that the parties' agreements prevail over the provisions of the CISG (Art. 6). Except for the provision of Art. 12 CISG (reservation as to form), the validity issues to be determined in conformity with national law (Art. 4 (a) CISG) and the principle of good faith (Art. 7(1) CISG), the parties' authority to regulate their relationship is unlimited. The CISG only supplements the parties' agreement in so far as the parties did not regulate an issue.” (sem grifos no original). MAGNUS, Ulrich. General Principles of UN-Sales Law. Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht, v. 59. 1995. Disponível em < http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/text/magnus.html>, acesso em 17 jun.2019. Em tradução livre: “Autonomia das vontades – Todos concordam que o contrato entre as partes prevalece sobre as disposições da CISG (art. 6). Com exceção das disposições do artigo 12 da CISG (reservas em relação a formalidades), a questão da validade, que deve ser determinada conforme a lei nacional (Art. 4
(a) CISG) e o princípio da boa-fé (Art. 7º(1) CISG), a autoridade das partes em regular sua própria relação é ilimitada. A CISG apenas suplementa o contrato entre as partes em relação às matérias não reguladas por este”.
ix UNIDROIT Artigo 1.8 – Proibição de comportamento contraditório: “Uma parte não pode agir em contradição com uma expectativa que suscitou na outra parte quando esta última tenha razoavelmente confiado em tal expectativa e, em conseqüência, agido em seu próprio detrimento”.
x BLACK’S LAW DICTIONARY, 6th ed., St. Paul: West Publishing Co., 1991, p.551.
xi GAMA JR., Lauro. Op.cit, p.326.
xii Vale ressaltar trecho do artigo publicado por Djakhongir Saidov “This formula comprises actual loss (damnum emergens) andloss of profit (lucrum cessans) (…). Three different views can be taken with respect to the inter-relationship of two concepts. First, prima facie, it seems that these concepts mean "the same thing", i.e., they are both used to describe the principle, underlying Article 74. Secondly, it can also be said that the concept of "full compensation for harm", which is reflected in the CISG in the same way as it is established in some Civil law systems, covers all possible kinds of loss. As to the expectation loss, it can be argued that it does not cover all types of loss.” Dentre os danos que não seriam indenizáveis dentro da CISG, o autor destaca os danos pela perda de reputação os quais poderiam não ser indenizáveis pela dificuldade de quantificação (um dos requisitos para a indenização por perdas e danos na CISG é, justamente, a certeza quanto aos valores – “certainty”). SAIDOV, Djakhongir. Methods of limiting damages under the Vienna Convention on Contracts for the International Sale of Goods. 2001. Disponível em: <http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/biblio/saidov.html#*>. Acesso em 17 jun.2019. Em tradução livre: “Essa fórmula compreende o dano real (damnus emergens) e os lucros cessantes (lucrum cessans) (...). Três posições diferentes podem ser utilizadas a respeito da relação de ambos os conceitos. Primeiramente, prima facie, pode parecer que ambos os conceitos são iguais, ou seja, são utilizados para descrever o princípio que inspirou o art. 74. Em um segundo momento, pode também ser dito que o conceito de “indenização integral”, que é refletido na CISG e é trazido por alguns ordenamentos de civil law, permite a restituição de todos os tipos de danos. Em relação aos danos de expectativa, pode-se dizer que a CISG não preza pela restituição de todos estes”
xiii Importante decisão exarada pela Suprema Corte da Alemanha nesse sentido: “The failure to meet the duty to mitigate damages can result in the complete exclusion of compensation insofar as damages could have been avoided altogether (compare Schlechtriem/Stoll, supra). As a rule, the review of the failure to observe the duty to mitigate damages pursuant to CISG Art. 77 must take place as part of the decision as to the existence of a cause of action. Only when it is certain that the failure to meet the duty to mitigate damages does not lead to the exclusion of liability and, thus, a claim of the injured party remains, the decision about [the failure to mitigate damages] can be reserved for separate proceedings concerning the amount of the claim”. Vine wax case. Federal Supreme Court, Germany 24 mar. 1999. Em tradução livre: “A falha em mitigar danos pode resultar na complete exclusão do pedido de danos, uma vez que estes poderiam ter sido evitados. Nesse sentido, a verificação da mitigação dos danos conforme o artigo 77 precisa ocorrer no momento da averiguação da causa da ação. Somente quanto é certo que o descumprimento da obrigação de mitigação não leva à exclusão da responsabilidade e, portanto, o pedido da parte prejudicada permanece, pode-se analisar a questão da mitigação em um procedimento separado no qual será discutido o montante do pedido.”
xiv BERTAM, Keller. Favor contractus – reading the cisg in favour of the contract. sharing international commercial law across national boudaries: festschrift for albert kritzer on the occasion of his eightieth birthday. London: Wildy, Simmons & Hill Publishing, 2008. p. 247-266.
xv DOLINGER, Jacob, “Direito Internacional Privado – Parte Geral”, Ed. Renovar, 6ª edição, 2002; BUREAU, Dominique e MUIR WATT, Horatia, “Droit international privé – Tome I – Partie générale”, Ed. PUF/Thémis, 2007.
[1] John O. Honnold, Lei Uniforme para Vendas Internacionais sob a Convenção das Nações Unidas de 1980 , 3ª ed. (1999), pinas 88-114.
[2] John Felemegas, A Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para a Venda Internacional de Mercadorias: Artigo 7 e Interpretação Uniforme
[3] Alejandro M. Garro. Trecho de Reconciliation of Legal Traditions in the U.N. Convention on Contracts for the International Sale of Goods
graduanda do curso de Direito pela Universidade Federal do Amazonas
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, ZILDA DA SILVA. Artigo 7 CISG: análise crítica e interpretativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jul 2022, 04:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /58907/artigo-7-cisg-anlise-crtica-e-interpretativa. Acesso em: 28 dez 2024.
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Patricia Araujo de Brito
Por: Lucas Soares Oliveira de Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.